sábado, 8 de setembro de 2012

Texto inicial do documentário "Os dias de UTI"

Desabafo
Livia Ressiguier

Se alguém me perguntar qual foi o pior daqueles dias eu respondo sem ter que refletir um só minuto: foi o dia em que te vi pela primeira vez. Mesmo sabendo que tive um parto prematuro e mesmo ouvindo do seu pai e do meu pai a mesma frase: “ela é muito pequena!”, dar de cara com você absurdamente miúda foi com certeza a pior sensação que já tive.

Cheguei a UTI ansiosa para te ver. Ouvi você chorar no parto. E porque já estava certa de que Deus já tinha me dado você, nada mais importava. Mas quando te vi, a pergunta que fiz para Deus foi: Meu Deus, mas como? Ainda hoje ao recordar aquele dia, sinto resquícios desta dor. Esperava sair de lá com minha bebê, pequena. Não pensei em problemas, em aparelhos, em distâncias. Pensei apenas que você seria pequena e que eu cuidaria de você para você crescer. Mas meu amor, você era minúscula. Eu realmente nunca imaginei que um bebê tão pequeno pudesse existir.

Quando recebi alta, ao cruzar a porta do fiz uma promessa: “prometo que algum dia nós vamos cruzar juntas essa mesma porta, e que até lá vou dar até minha última gota de esforço para que você sofra o menos possível”. Não consegui. Não consegui não sofrer, não consegui evitar o seu sofrimento. Na UTI não existem analgésicos. Tudo é feito a frio, a seco, a carne viva e a sua dor parece não ter a menor importância perto da gravidade da situação. Parecia que eu tinha sido enganada por Deus. 

Não!!! Absolutamente não era aquela a filha que eu tinha “encomendado”. Tinha encomendado uma bebê gordinha, lindíssima, filas de visitas, pratinhos de canja, amamentação olhando nos olhos, canções de ninar, desfiles de roupinhas... Nada parecida com essa mini bonequinha magrela e olhuda, de fralda dentro dessas caixinhas aquecidas e com um bando de fios ligados no corpo. Nem tocar em você eu podia!!!! Foi a segunda grande dor que senti. Não poder tocar em você, não poder pegar no colo meu nenenzinho foi simplesmente insuportável. Um vazio em meus braços incalculável, e você lá precisando tanto de um carinho.

Em pouco tempo percebi que não existia nenhum 0800 com linha direta para o céu, nem “fale conosco” com email ou chat para eu poder reclamar e resolver a situação. A UTI testa o tempo todo os seus limites. Você vive no limite entre a vida e a morte, numa roda viva de emoções das mais intensas, conhece de perto o pavor, a impotência, a frustração, a exaustão. E tem que estar sempre pronta a tomar decisões rápidas e conscientes. É muito difícil. Você se sente solitária. Lembro que entrava no elevador e prendia a respiração até chegar à porta da uti, tentando não ser pega de surpresa por algo muito ruim.

Com o coração disparado, ao me aproximar da sala queria sair correndo de tanto pânico... medo das notícias...medo da perda...medo da piora...medo do futuro...medo do presente...medo de ser fraca...medo de ser culpada...medo de não saber o que fazer. Assim passaram-se semanas entre apnéias, convulsões, enterocolites, transfusões, insuficiências respiratórias, sepsis e pneumonias... Doutor, não quero ouvir essas palavras difíceis de entender. Me diga apenas que está cuidando o melhor que pode da minha filhinha, pois essa pequenina ai na sua frente ainda é meu bebê. Quero que ela seja cuidada com carinho. Pois, quando olho sua frágil aparência, o que eu vejo é força.

Quando olho cada dia de dificuldade que enfrenta, o que eu sinto é amor. É difícil entender todos esses aparelhos conectados à minha filha, mas ainda consigo ver que por trás deles está a minha linda bebê. Não quero saber das impossibilidades, quero ter esperança. As estatísticas de que fala não conhecem o meu Deus. Quero me preparar para o dia maravilhoso, da nossa comemoração, só nossa, porque somos só nós duas. Sou sua e você é minha, só minha, não divido com ninguém. Quem decidiu me dar você foi Aquele maior de todos, e ninguém menor do que ele pode querer tomar esse lugar.

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