sexta-feira, 21 de setembro de 2012

As mães de UTI


Papai do Céu, toma conta das mães de UTI,
Cuida de aliviar seu sofrimento,
Faz com que nunca desistam de sorrir,
E traz para elas alivio e alento...

Papai do Céu, não as permita nunca desistir,
Faz da sua fé seu alimento,
Prepara seus corações para o que há de vir,
Envolve-as com ternura e acolhimento,

E abençoa suas vidas, Pai amado,
Que é uma só com a do filho internado
Esperando a cura, esperando a volta ao lar...

Cuida das mães de UTI, mães preciosas,
Cuida das mães de UTI, mães dolorosas,
Mães que precisam tanto de seu cuidar...

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Mensagem final


Aos familiares e aos bebes prematuros  internados nas UTIs Neonatais do mundo inteiro


Aqui estamos,
De longe viemos...
Um longo e cansativo itinerário...
Foram inúmeras as vezes que choramos,
Foram inúmeras as dores que sofremos,
E no entanto
Tudo parece ter sido
Absolutamente necessário
Para que chegássemos até aqui:
As lágrimas, a aflição, o desespero,
As noites intermináveis sem dormir,
Os descaminhos sem sol por que passamos
E as fraquezas de quase desistir...
Tudo absolutamente necessário
Para que acabássemos por descobrir
Tantas lições de vida, acolhimento,
Amparo, apoio, sustentação,
Solidariedade abrandando o sofrimento,
Perseverança alimentando o coração...
Tudo absolutamente necessário,
E imaginar que imaginávamos o contrário
Quando a nossa vida cuidou de desabar...
Tudo em volta, de repente, sem sentido...
Faltou o chão, de repente, de pisar...
Foram dias inteiros tentando descobrir
E noites sem dormir nem acordar...
Um sofrimento diário
E no entanto
Parece que absolutamente necessário
Para que mobilizássemos nossas energias
Por dias e dias e dias e dias
E muitas vezes
Até por meses
Entre tomografias e ultra-sonografias,
Entre hipoglicemias e hiperglicemias,
E anemias e arritmias
E outros tantos sinônimos de dor...
Fomos bordando assim nosso calvário
E hoje
Parece que tudo
Foi absolutamente necessário
E nada absolutamente sem valor...

Porque a fraqueza nos fez fortalecidos,
A dor nos desenhou mais resistentes,
As ameaças tornaram-nos mais vivos
E tanta angustia, mais persistentes...

Tocaram-nos o afetos dos queridos:
Esposo, esposa, pais, irmãos, parentes...
Luzes para que não quedássemos perdidos,
Sustento para que não tombássemos descrentes...

E a dor que nos fez tantas vezes tão sozinhos,
Atormentando nossos caminhos,
Fazendo nosso coração passar tão mal,

É a mesma dor, condição transformadora,
Que com sua força renovadora
Nos traz aqui, nesse dia especial...

E a mesma dor que nos fez tão diminuídos
É a dor que nos tornou fortalecidos
E nos mostrou o caminho de saída,

E a mesma dor que tentou-nos derrotados
É a dor que nos traz hoje renovados
Valorizando mais que nunca a própria vida...

E a vida como uma dádiva sagrada
É o bem maior que em sua caminhada
Os nossos filhos vão preservando...
Vão resistindo, heróis, a tempestades,
Saindo ilesos de calamidades,
Vão escapando, vão se salvando...

E a vida como uma graça alcançada
Por cada um deles nessa jornada
É o bem maior que cada um vai conquistando,
Vestidos de esperanças e vontades,
Superando, como heróis, dificuldades...
É a dor que em paz vai se transformando....

Aqui estamos
Foi como se o coração parasse o calendário
E o tempo desistisse de passar...
E no entanto
Tudo parece ter sido absolutamente necessário
Para que chegássemos
A essa hora
E hoje, a esse dia,
Completa e inteiramente renovados
Dispostos como nunca a continuar...

Crescemos
Com a dor que enfrentamos, amadurecemos,
Amadurecidos, aprendemos a compartilhar
A nossa dor com a dor de toda gente,
E foi isso que nos fez seguir em frente
E nos deu força pra perseverar...

Crescemos
A dor que um dia nos fez sentir pequenos
Foi a mesma que nos ensinou a caminhar...
Uma lição de se aprender diariamente...
Uma lição de durar eternamente...
Um aprendizado que se chama amar...

Mamiferozinho


Artigo XII
Todo prematuro tem o direito de ser alimentado com o leite de sua própria mãe ou, na falta desta, com o de uma outra mulher tão logo suas condições clinicas assim o permitirem. Deverá ter sua sucção corretamente trabalhada desde o inicio da vida e caberá à equipe de saúde garantir-lhe esse direito, afastando de seu entorno bicos de chupetas, chucas ou de qualquer outro elemento que venha interferir negativamente em sua sucção saudável, bem como assegurando seu acompanhamento por profissionais capacitados a facilitarem esse processo. Nenhum custo financeiro será considerado demasiadamente grande quando aplicado com esse fim. Nenhuma fórmula láctea será displicentemente prescrita e nenhum zelo será descuidadamente aplicado sem que isso signifique desatenção e desamparo. O leite materno, doravante, será considerado e tratado como parte fundamental da sua vida.   
    


Que Deus te proteja,
Mamiferozinho,
Das mamadeiras,
Das chucas e dos bicos
Oferecidos a ti sem nenhuma razão,
E acorde os médicos,
E as fonos
E os enfermeiros
Para a necessidade
De sua proteção...
Que te afaste chupetas,
Mamiferozinhos,
Fazendo da mama da mamãe
A grande opção,
E que te distancie
Dos bicos ortodônticos
E dos siliconados
Sem exceção...
Que Deus te permita,
Mamiferozinho,
O leite materno
Pra tua satisfação,
E nas dificuldades,
Meu amiguinho,
Que o leite humano
Do Banco de Leite
Não te falte não...
Que a gota de colostro,
Mamiferozinho,
Seja sua dose
De proteção,
Que seja a gota de teu sustento,
Que seja teu alimento
E salvação...
Que seja escrita assim dessa maneira
A história da tua recuperação:
Amor,
Calor,
Leite materno,
Vida,
Apego,
Afeto,
Crescimento são...
Que Deus te permita,
Mamiferozinho,
A busca,
A grande boca,
A pega,
A sucção,
A lingua canolada
E protraída,
A vida
Em minuciosa exatidão...
E que tu cresças, mamiferozinho,
Orgulhoso dessa nobre condição,
Amamentado
E cuidado com carinho,
Semente boa
Da próxima geração...
Que Deus te guarde,
Mamiferozinho,
Que te guie
E não te solte
Da sua mão,
Que esteja sempre contigo,
Mamiferozinho,
Meu doce
E pequenininho
E grande irmão...

Meu canguruzinho


Artigo XI
Todo prematuro tem o direito, uma vez atingidas as condições básicas de equilíbrio e vitalidade, ao amor materno, ao calor materno e ao leite materno que lhe são oferecidos através do Método Mãe Canguru. Caberá à Equipe de Saúde prover as condições estruturais mínimas necessárias a esse vinculo essencial e transformador do ambiente prematuro. Nenhum profissional ou cargo de comando em nenhuma esfera tem a prerrogativa de impedir ou negar a possibilidade desse vinculo que é símbolo da ciência tecnocrata redimida.
 


Meu canguruzinho,
Acolhido pelo conforto do seu ninho,
Sereno,
Silencioso
E sossegado...
Tão bom saber
Que você não está sozinho,
Tão bom perceber você
Bem acompanhado,
Porque, meu canguruzinho,
Nenhum outro cantinho
É mais gostoso e mais delicado
Do que esse seu cantinho,
Meninozinho,
E nem cantinho nenhum
Mais abençoado...
Cantinho feito de amor
E de calor,
Banhado a leite materno,
Cantinho delicadamente planejado...
Cantinho único,
Meu canguruzinho,
Que é para ser vivido,
Curtido
E perpetuado...
Quem vê você assim
Pequenininho,
Adormecido em seu ninho
E sossegado,
Não faz idéia do tamanho da sua história,
Não imagina o que você tem suportado,
Quase nem é capaz,
Meu companheiro,
De enxergar o tamanho verdadeiro
Da sua trajetória
E do peso que você carrega,
Resignado,
Do útero materno
Ao nascimento,
Do nascimento até esse colinho,
Meu canguruzinho,
Esse colinho que é seu sustento,
Esse sustento
Que é seu caminho...
Esse caminho
Que é seu legado...
Meu pedacinho de gente,
Meu gigante,
Seu exemplo é impressionante
E comovente,
Justo por isso
Absolutamente contagiante,
Meu super-herói diferente...
Meu pequenino grande viajante,
Meu sempre bastante amiguinho,
Meu bom companheirinho, e o mais constante,
E o mais desconcertante,
Meu canguruzinho...

Oração para os meus cuidadores


Artigo X
Todo prematuro tem direito a perceber a alternância entre a claridade e a penumbra, que passarão a representar para ele a noite e o dia. Nenhuma luz intensa permanecerá o tempo inteiro acesa e nenhuma sombra será impedida de existir sob a alegação de monitorização continua sem que os responsáveis por estes comportamentos deixem de ser considerados displicentes, agressores e de atitude dolosa.


Papai do Céu
Cuida dos meus cuidadores com cuidado
Para que eles não me faltem com a atenção,
Eu tenho sofrido, Papai do Céu, um bocado,
Nesses meus dias de internação:

Noites inteiras tenho passado acordado,
Dias inteiros mergulhado em solidão,
Tudo em minha volta parece exagerado:
A luz, a dor, o som, a movimentação...

Cuida dos meus cuidadores nesses dias
De condutas técnicas, de rotinas frias
Que os lápis de cor não conseguem colorir...

Cuida com cuidado dos meus cuidadores
Para que as dores por detrás das minhas dores
Possam também ir deixando de existir...

Desabafo


Artigo IX
Nenhum prematuro deverá, sob qualquer justificativa, ser submetido a procedimento estressante aplicado de forma displicente e injustificada pela Equipe de Saúde, sob pena da mesma ser considerada negligente, desumana e irresponsável.



Eu não preciso da sua mão exagerada,
Da sua rotina não contingente
Que trata de mim como se eu não fosse nada
Ou como se eu não estivesse na sua frente,

Que larga minha vida desorganizada,
Que ignora meu choro de forma displicente  
Como se não enxergasse minha alma apertada,
Como se eu não fosse gente...

Eu não preciso da sua rotina
Que me reduz à necessidade ou não de dopamina
Como se eu não tivesse sentimento nem vontade...

Eu não preciso da sua negligencia,
Desumanidade travestida de ciência
Como se eu não pertencesse à humanidade... 

Uma canção amiga


Eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças. Canção amiga, Carlos Drummond de Andrade.

Artigo VIII
Todo prematuro tem o direito inalienável ao silencio que o permita sentir-se o mais próximo possível do ambiente sonoro intra-uterino, em respeito a seus limiares e à sua sensibilidade. Qualquer fonte sonora que desrespeite esse direito será considerada criminosa, hedionda e repugnante.


Eu preparo uma canção silenciosa
De um silencio que quase cause inquietação,
Escrita sem palavra, inútil e dispendiosa,
Num idioma de pura percepção,

Eu preparo uma canção minuciosa,
Quase inaudível, mas sem desatenção,
Composta de arquitetura cuidadosa,
Delicadamente elaborada... Uma canção

Que faça acordar os homens poderosos
Para o poder dos gestos silenciosos
E para a força das palavras mansas...

Uma canção que se espalhe aos quatro ventos,
Que faça acordar os homens desatentos,
E adormecer as crianças...

Canção pra te fazer sonhar


Artigo VII
Todo prematuro tem direito ao repouso, devendo por isso ter respeitados seus períodos de sono superficial e profundo que doravante serão tomados como essenciais para seu desenvolvimento psíquico adequado e sua regulação biológica. Interromper de forma aleatória e irresponsável sem motivo justificado o sono de um prematuro é indicativo de maus tratos


Descansa, anjo... Eu cuido do teu sono...
Repousa tranqüilo teu coração,
Dorme suave. Nada lá fora
Pode te ameaçar o sono agora,
Descansa, fica leve, sai do chão...

Descansa, anjo, que eu te protejo
Dos olhos da bruxa, do bicho papão,
Descansa que eu te cuido com desvelo,
Descansa, já não há mais pesadelo,
Descansa, eu te dou minha proteção...

Eu cuido pra que nada te aconteça,
Nada apareça de ruim que te incomode:
Nenhum barulho, nenhum ruído,
Nenhuma coisa má, nenhum perigo,
Nada te assuste, nada te acorde...

Dorme tranqüilo. Deixa que eu te cuido:
Nem muito frio, nem muito calor,
Nenhum barulho ou conversa exagerada,
Dorme, eu me entendo com a madrugada,
Dorme, eu me entendo com o Criador...

E nem que para isso eu me desdobre
E até me esqueça eu mesmo de dormir,
E passe a noite te vigiando,
E passe a noite inteira te cuidando,
E a noite passe sem eu sentir...

Por isso descansa, eu cuido do resto:
Da dor, do desconforto, do cansaço...
Nada te preocupa mais... Descansa...
Dorme teu sono, pequena criança,
E o que for preciso deixa que eu faço:

Apago as luzes, reinvento a noite,
E mudo algumas coisas de lugar
Trocando turbilhão por calmaria,
E transformando dor em poesia
Só pra te ver descansar...
E fico imaginando coisas boas
Pra te esperar despertar:
Um toque suave, gentil e apropriado,
Uns truques para a dor sair do teu lado,
E algumas musicas para cantar...

Descansa, eu te preparo essa alegria:
Silencio, ninho, sono, enrolamento,
O colo materno juntinho o tempo inteiro,
Dengo, carinho, um xodozinho, um cheiro,
E um mundo inteiro de acolhimento...

Por isso guarda a calma delicada,
Nada de mal vai te acontecer...
Eu dou um susto na bruxa malvada,
Dorme tranqüilo, anjo, porque nada
Eu vou deixar mais te fazer sofrer...

Descansa, anjo, eu cuido de tudo,
Descansa, anjo, pode deixar,
Descansa que eu te cuido com carinho,
Descansa e guarda bem esse versinho
Que eu preparei pra te fazer sonhar.

A dor


Artigo VI 
Nenhum prematuro será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. Sua dor deverá ser sempre considerada, prevenida e tratada através dos processos disponibilizados pela ciência atual. Nenhum novo procedimento doloroso poderá ser iniciado até que o bebê se reorganize e se restabeleça da intervenção anterior. Negar-lhe esse direito é crime de tortura contra a vida humana.


Por que é que você chega sempre assim, estabanada,
Desinibida, desarrumada,
Causando tanta desorganização?
Por que é que é sempre tão sem paciência,
Por que se comporta com tanta displicência,
Por que é que age com tanta desatenção?
Por que é que é sempre assim tão turbulenta,
Por que é que chega sempre com tormenta,
Como o Katrina?
Por conta de que tanta adrenalina?

E se eu cuidasse de você, dor,
Com o mesmo cuidado de quem cuida de um amor?
E se tratasse você com mais respeito?
E se eu me preparasse
Pra toda vez que você chegasse
Encontrasse tudo pronto, do seu jeito?
E se eu arrumasse tudo com carinho,
Tudo do seu jeitinho?
Você ficaria contente?
Você se comportaria de um modo diferente?

Então, minha amiga dor, combinamos assim:
Eu cuido de você, você cuida de mim,
E a gente não se descuida nem se maltrata...
Eu me preparo pra sua chegada,
Você se aproxima bem mais arrumada,
E a gente não se machuca nem se mata...
Quem sabe um dia a gente não se entende,
Você me compreende?
Será que ta bom assim dessa maneira?
Nós temos um acordo, companheira?

Comunicação


Artigo V
Todo prematuro tem direito à liberdade de opinião e expressão, portanto deverá ter seus sinais de aproximação e afastamento identificados, compreendidos, valorizados e respeitados pela equipe de cuidadores. Nenhum procedimento será considerado ético quando não levar em conta para sua execução as necessidades individuais de contato ou recolhimento do bebê prematuro.


Ensina-me a compreender tuas vontades
E a entender o que dizes com o olhar,
Ensina-me a valorizar tuas verdades
E a perceber tua forma de falar,

A descobrir tuas singularidades
E a responder quando tua voz chamar,
A respeitar tuas dificuldades,
Ensina-me a aprender a te ajudar...

E um dia, quando eu compreender teus gestos,
E souber diferenciar os teus protestos
Das tuas necessidades de aproximação,

Então exatamente nesse dia
Será como descobrir tua poesia...
Será como desvendar teu coração...

Universalidade


Artigo IV
Todo prematuro tem direito ao tratamento estabelecido pela ciência, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. Sendo assim, todo prematuro tem o direito de ser cuidado por uma equipe multidisciplinar capacitada a compreendê-lo, interagir com ele e a tomar decisões harmônicas em seu beneficio e em prol de seu desenvolvimento.   



É como se cada um deles fosse o único,
E cada outro fosse o mesmo um,
E não houvesse nenhum mais além.
E como se cada um deles fosse o outro,

E por não haver, por isso, mais nenhum
Além daquele um que já são todos,
Fica assim como se fossem inseparáveis,
E também, por conta disso, indivisíveis,

E o que for permitido a este um, que seja
Distribuído igualitariamente,
Sem diferenças, sem distinção...

Porque é como se cada um deles fosse o próximo...
E o direito de um deles fosse o mesmo
De todos os outros, sem discriminação... 

Canção do exílio


(releitura de poema homônimo de Gonçalves Dias)

Artigo III
Nenhum prematuro será arbitrariamente exilado de seu contexto familiar de modo brusco ou por tempo prolongado. A preservação deste vínculo, ainda quando silenciosa e discreta, é parte fundamental de sua vida.   
Canção do exílio


Minha terra tem carinhos
Em que eu gosto de deitar.
As vozes que aqui me tocam
Não me tocam como lá.

Minha terra tem mais gosto,
Mais ternura, mais sabores,
De um silencio com mais vida
Carregadinha de amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem cantigas,
Que me encantam pra ninar...
  
Minha terra tem delicias
Que tais não encontro eu cá.
Em cismar sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem carinhos
Em que eu posso descansar.

Não permita Deus que eu custe
A retornar pro meu lar
Pra desfrutar dos primores
Que não encontro por cá;
Para escutar as cantigas
Da minha mãe me ninar...

Reconhecimento


Artigo II
Todo prematuro tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.    


E onde quer que estejas, pequenino,
E sob qualquer condição,
E ainda que seja incerto o teu destino
E a tua recuperação,

E ainda que a tua história, meu menino,
Pareça um ponto de interrogação,
Tudo tão tênue e frágil, nebuloso e fino,
Tudo tão quase sem explicação,

Ainda assim, que em todos os lugares
Teus cuidadores te estendam seus olhares
Como quem se ajoelha diante de um Rei,

E gentilmente, como a mão quando abençoa,
Que te reconheçam, menino, como pessoa
Diante da Grande Lei...

Nascimento


Artigo 1Todos os prematuros nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão  e consciência. Possuem vida anterior ao nascimento, bem como memória, aprendizado, emoção e capacidade de resposta e interação com o mundo em sua volta.   

Porque desde a barriga da mãe o bebe
Escuta,
Reage,
Entende,
Se assusta,
Se agrada,
Pede,
Adormece,
Sente vontade,
Sente saudade,
Se alegra,
Se agita,
Porque desde a barriga da mãe o bebe
É um ser humano completo.

Por conta disso, que seja
Dignamente tratado...
Por conta disso, que seja
Respeitado...
Por conta disso, cuidador,
Cuidado...

Descobrimento


(releitura de poema homônimo de Mario de Andrade...)

 Aos bebes prematuros do mundo inteiro, por todos os tempos…

Abancado à minha escrivaninha em Campos dos Goytacazes,
No meu apartamento próximo ao centro,
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido,
Com o computador palerma olhando pra mim.
Não vê que me lembrei
Que lá na Unidade Neonatal, meu Deus,
Não tão longe daqui,
Na solidão da sua prematuridade,
Um menino pequenino e magro,
Quase sem cabelo cobrindo-lhe os olhos,
Depois de mamar no peito de sua mãezinha,
Faz pouco se deitou na incubadora, e está dormindo...
E esse prematuro é brasileiro que nem eu.

A mãe prematura


Às mães prematuras do mundo inteiro, por todos os tempos...


A mãe prematura do bebe prematuro
Nascida antes do que era para ser,
Como quem antecipa o seu futuro,
Como quem torna-se sem perceber...

A mãe prematura do bebe prematuro
E a luta por seu bebê sobreviver...
Às vezes tudo é tão sombrio e escuro...
Tudo tão frio, sem amanhecer...

A longa dor de quem aguarda a cura,
Como quem, sem saber o que, procura,
E assim, nessa procura, se desfaz...

Segura nas mãos de Deus, mãe prematura...
Segura nas mãos de Deus que te segura...
Segura nas mãos de Deus e segue em paz...

Constatação


Em versos livres sobre uma verdade Winnicottiana


Quando a gente vê um bebe sozinho
O que é que exatamente a gente vê?
A gente vê um pedaço,
Uma parte,
Uma fração...
Porque um bebe sozinho não existe...
O que existe
É um bebe
E a sua mãe...
Constatação...

Fanáticos por dopamina



Quando se pretende discutir a complexa e amplamente negligenciada questão dos direitos universais do bebe prematuro, pano de fundo que qualifica, em ultima análise, a eficiência ampliada de uma Unidade Neonatal, ou quando se estabelece a discussão acerca da observância pelas equipes de saúde à inviolabilidade destes direitos naturais da espécie humana, é necessário antes de qualquer coisa estabelecer uma compreensão consensual dos conceitos bebe prematuro e prematuridade da forma como os utilizamos, de modo a permitir sua utilização ótima e sua aplicação aceitável, evitando a tradução incompleta ou deturpada da informação que se pretende movimentar.
O termo prematuridade está associado à duração do tempo de gestação dos bebes humanos. Embora já se discutam em vários protocolos a definição exata da duração fisiológica da gestação humana necessária para o nascimento a termo, a Organização Mundial da Saúde estabelece o marco de 37 semanas como limítrofe entre a prematuridade e a duração da gestação fisiologicamente aceitável para o nascimento em tempo ótimo.
A condição prematura, entretanto, abrange uma ampla variação clinica, implicando em incidência variada de manifestações que vão desde aquelas presentes na prematuridade extrema àquelas outras que definem a prematuridade limítrofe. Isto permite afirmar que a prematuridade possui uma plasticidade que empresta a ela uma imensa gama de significados. Sua expressividade e complexidade são inversamente proporcionais à duração da gravidez: quanto mais curto o tempo gestacional, mais ricamente caracterizada é a manifestação clinica da prematuridade, quanto mais longo esse tempo, menos expressiva ela é.
A prematuridade relativa a 25 semanas é inteiramente diferente em seu significado funcional daquela outra relacionada a 36 semanas de gestação. Além de clinica, essa expressão amplamente diversificada diz respeito às conseqüências familiares e sociais que são da mesma forma diretamente ligadas à intensidade dessa prematuridade. É, por isso, um conceito amplo, e não único. Uma palavra única com significado múltiplo. Muitos conceitos em um único termo. A prematuridade e sua significação plástica. A prematuridade e a necessidade de se compreende-la em sua larga abrangência de sentidos. Todos num só. Um só significando tanto.          
Nascer prematuramente, por sua vez, é um importante acontecimento global. Segundo dados da Organização Mundial da Saude, no ano de 2005 aproximadamente 10% da população mundial nasceu antes do tempo adequado. Esse numero corresponde a alguma coisa em torno de 13 milhões de nascimentos prematuros em todo o planeta naquele ano. 11 milhões desses nascimentos prematuros ocorreram na África e na Ásia, sabidamente os continentes mais pobres do mundo (1). Para bebes tão pequenos são números gigantescamente assustadores. Dados estarrecedores quando o assunto são bebes tão delicados.
Em um de seus estudos, a Dra Nathalie Charpak afirma que o mapa da prematuridade se sobrepõe ao mapa da miséria em nosso planeta (2). Os números da OMS dramaticamente confirmam isso. Essa simples constatação dimensiona a importância social do nascimento prematuro e das suas conseqüências para a vida do planeta.
Uma realidade que impressiona.
Como afirmado anteriormente, o nascimento prematuro além das previsíveis e hoje bem estabelecidas conseqüências fisiológicas para a historia de vida do bebe, é o responsável direto por inúmeras intercorrências na vida de sua família e do ambiente social em sua volta, envolvendo cuidadores, gestores e apoiadores que formam assim uma imensa rede social em busca de caminhos muitas vezes de natureza empírica e intuitiva no sentido de tentar devolver naturalidade àquele nascimento.
Essa grande crise caracterizada por culpas, medos, sustos, enfrentamento de dificuldades vivenciadas na busca de uma vaga em Unidade Neonatal, associado a submissão compulsória às barreiras impostas às mães e familiares desse bebe ligadas ao lento e doloroso aprendizado do convívio com as regras rígidas que comandam o funcionamento destas Unidades traz até a família prematura uma mistura de sentimentos ao mesmo tempo de solidariedade e abandono, de esperança e de perda, de desespero e de fé. A sociedade é chamada a prestar apoio. As instituições de saúde se argumentam com tecnologia cada vez mais complexa.  Crise. Gastos. Desenvolvimento tecnológico. De um nascimento prematuro ninguém parece escapar ileso.
Desta grande engenharia e conjunção de conhecimentos multiprofissionais, nasce para a neonatologia moderna um grupo de personagens a que podemos chamar bebes de UTI, recém-nascidos criados sob o cuidado distante da família e entregues aos avanços tecnológicos indispensáveis acionados para otimizar a monitorização e o tratamento dos agravos que acompanham o nascimento prematuro. Desde o inicio, envolvidos por um numero cada vez maior e mais complexo de artefatos, estes bebes de UTI desenvolvem respostas físicas e comportamentais semelhantes, fortalecendo a motivação necessária para que este conceito, bebe de UTI, se popularizasse.
Um conceito embutido guardado no termo prematuridade é o significado do que chamamos bebe prematuro.
É perfeitamente compreensível por conta das características que a condição prematura empresta a esse bebe que o senso comum tenha resolvido chamá-lo bebe prematuro. Da mesma forma é perfeitamente previsível que o conjunto de eventos clínicos comuns a este grupo especifico de bebes tenha criado a necessidade de encontrar um termo didaticamente adequado para defini-lo. Também é absolutamente aceitável que o conjunto de respostas às duvidas da família e de toda a
sociedade sobre esta criança possa ser oferecido em bloco pelas ciências da saúde e ser direcionado a um estereótipo de bebe que o conceito comum adotou como nome de bebe prematuro, uma espécie de sub-grupo fortemente representativo da família dos bebes de UTI.
É preciso observar entretanto um aspecto fundamental que passa muitas vezes despercebido ao olhar comum quando se adota o conceito de bebe prematuro.
Considerando o bebe humano nascido dentro do período fisiologicamente considerado ótimo, é fundamental compreender que o bebe prematuro não representa uma individualidade diferenciada daquele outro com características diversas, e que a prematuridade que traz graves conseqüências à sua fisiologia não torna, apesar disso, o bebe prematuro menos integro, menos digno e menos completo que aquele outro.
O bebe prematuro não é, por conta disso, uma entidade per se.
A imensa variabilidade de expressões clinicas carreadas pela prematuridade conforme sua intensidade sequer permite simplificar o conceito bebe prematuro, que como vimos não é um só, são vários, distintos, imensamente diferenciados e bem caracterizados.
A prematuridade que empresta ao bebe humano o rotulo bebe prematuro é um fenômeno de manifestação transitória e superável ainda que com níveis diversos de conseqüências a longo prazo, mas que em hipótese alguma diminui sua competência ou limita as potencialidades de sua totalidade e integridade como ser humano.
Não há, portanto uma dualidade formada entre os bebes nascidos a termo e os nascidos de modo prematuro. Sua diferenciação é meramente fisiológica e não qualifica competências, dignidade e direitos distintos.
O bebe prematuro não existe como um ente.
Isso é um fato.
A condição prematura não pode arranhar sua condição inegociável de autentico representante da espécie humana.
É muito comum ao profissional de saúde e mesmo à família e à sociedade confundir fisiologia e competências, sinais clínicos e habilidades emergentes destes bebes com nascimento prematuro. Esta confusão conceitual e incompetência profissional é muitas vezes a principal responsável pelo comportamento inoportuno das equipes de saúde e dos familiares em relação a estes bebes.
Preocupada com as conseqüências deste olhar equivocado sobre a vida e as capacidades do bebe, a ciência tem tentado desde as ultimas décadas buscar alternativas que permitam a ampliação do cuidado com este bebe para além dos limites da Unidade Neonatal e de seus dispositivos constrangedores e desrespeitosos, permitindo-se, através de caminhos alternativos, facilitar o envolvimento acolhedor dos pais, da família, da sociedade e de seus próprios cuidadores em direção à atenção integral a este bebe nascido prematuramente.
São exemplos destas alternativas da ciência redimida a Metodologia Mãe Canguru que devolve à mãe o mátrio poder perdido pela condição prematura do nascimento de seu filho, permitindo a retomada do vinculo roubado pela Unidade Neonatal, bem como outras formas do cuidado dito “humanizado”, como o NIDCAP, cujo grande mérito é a ampliação do foco da atenção profissional para além da condição clinica do bebe, envolvendo o ambiente, o acesso da família ao bebe, a “ecologia” da Unidade Neonatal de uma forma geral , capacitando o profissional para uma percepção diferenciada da fisiologia do bebe e do manejo de seu entorno.    
Não é muito lógico esperar coerência de um planeta onde um bilhão de pessoas passam fome (3) que necessitaria, segundo dados da ONU, o investimento de 3 bilhões de dólares para ser controlada e que ao invés de controlar essa fome que destrói a própria espécie faz opção por gastar 1,3 trilhões de dólares com armamentos nucleares. Um planeta que vê morrer uma criança a cada 3,6 segundos de causa evitável e que se comporta como quem não se importa ou como quem parece não se incomodar com isso.
Esta incoerência e falta de critérios éticos espalha seus fragmentos altamente prejudiciais à dignidade humana por todas as áreas da vida contemporânea.
A saúde não escapa ilesa dessa influencia desastrosa.
Uma sociedade em colapso.
Restringindo nosso olhar para o comportamento médico em relação ao bebe nascido prematuramente não é difícil detectar sinais dessa incoerência e falta de critérios éticos, fruto de uma civilização esquizóide e autodestrutiva.
Temos sido treinados a utilizar sistematicamente uma linguagem bioquímica e farmacológica durante nossa pratica diária no trato com esses bebes. Acabamos assim por nos tornar especialistas em miliequivalentes e miligramas, tornando-nos especialistas em traduzir alterações fisiológicas em leitura bioquímica e cuidados necessários em leitura farmacológica.
Fanáticos por dopamina, perdemos o fio da meada que nos conduziria ao cuidado  individualizado com o recém nascido, desprezando o ponto de vista do cuidar em detrimento do fúria curadora em tratar.  
Desprezamos os decodificadores da linguagem corporal desses bebes e certamente por isso tornamo-nos especialistas em compreender taxas glicêmicas e índices de saturação ao mesmo tempo em que nos analfabetizamos na leitura do bocejo de um bebe, de suas mãozinhas cerradas, olhinhos bem abertos ou de seu braço sobre a face como se desejasse se esconder ou se proteger de nós. Mal soletramos, sua regurgitação, sua organização, de sua desorganização. Simplesmente ignoramos e sequer registramos seus significados nos prontuários clínicos durante nossas visitas diárias.
Normatizamos algorritmos bem fundamentados que entram em ação cada vez que a saturação periférica de um bebe cai de 96 para 72%, mas somos paradoxalmente incapazes de abraçar e confortar uma mãezinha adolescente de primeiro filho que entra chorando na Unidade para visitar seu bebe pela primeira vez. Estamos muito longe de entender a dor materna e conecta-la com a queda de saturação de seu bebe. Estamos muito distantes da aceitação do fato que a harmonia materna pode ser utilizada para a estabilização da vida de seu filho. A UTI é Neonatal. A dor da mãe não entra na tomada de decisão. Assumimos sistematicamente uma postura de completa negligencia em relação e essa dor e quando decidimos intervir, na maioria das vezes utilizamos conhecimento tácito, empírico, improvisado e por inspiração do momento. Desaprendemos a função do abraço. Nos afastamos da vida. A ciência sequer preta atenção habitual no cuidado materno. Em recente estudo, Caroline Tronco e cols analisaram o conteúdo temático de 608 resumos de trabalhos acerca da saúde de bebes de baixo peso e de muito baixo peso em UTIs neonatais publicados entre 1990 e 2008. Embora demonstrassem os “avanços na atenção a saúde do recém-nascido, a complexidade clínica e as implicações para sua assistência” estes estudos revelaram nas suas letras o grande ausente do cuidado com este bebe: a sua família. Ainda não percebemos a importância essencial de um cuidado voltado para o desenvolvimento do bebe e centrado na família. Família não cabe em ampolas. Família não se mistura com monitores. Vamos priorizando a tecnologia e asfixiando o humano sem perceber que isso é a trajetória para o colapso.
Da mesma maneira, a saturação, a coloração da pele, a presença de resíduo gástrico hemorrágico ou não recebem invariavelmente de nossa pratica equivocada um tratamento e uma leitura preferencialmente bioquímica em detrimento da que poderia levar à correção dos fatores ambientais favorecedores da desorganização que muitas vezes é a causa maior dessa pele moteada ou desse resíduo indesejável.
Fanáticos por dopamina, já não sabemos ler a linguagem do corpo. 
Analfabetizamos.
Submersos em imensa lista de diagnósticos clínicos em busca de resolução, não valorizamos o fato de que os bebes nascidos prematuramente são dotados de razão  e consciência e possuem vida anterior ao nascimento, bem como memória, aprendizado, emoção e capacidade de resposta e interação com o mundo em sua volta, acabando assim por desrespeitar sua integridade mais ampla e desconsiderar sua capacidade de percepção e interação...    
Acostumados com a rotina diária e impessoal de nossas atividades clinicas, não percebemos o direito desses bebes de serem reconhecidos em todos os lugares como pessoa perante a grande Lei Universal.    
As normas rígidas e muitas vezes exageradas do funcionamento das Unidades Neonatais fazem com que nossos olhos profissionais descuidados não dêem importância à preservação do vínculo familiar como parte fundamental da vida deste bebe. Estabelecemos horários para visitas maternas, transformando pais em visitas e ferindo mortalmente o vinculo sagrado entre a mãe e o bebe que deveríamos preservar.    
Sufocados pelas dificuldades sociais e tecnológicas muitas vezes intransponíveis e fora de nosso alcance, negligenciamos a esse bebe o tratamento idealmente estabelecido pela ciência contemporânea, deixando de oferecer a ele o cuidado de uma equipe multidisciplinar capacitada a compreendê-lo, interagir com ele e a tomar decisões harmônicas em seu beneficio e em prol de seu desenvolvimento. Arquitetamos a falta de vagas investindo mais valores em defesas militares que em preservação da vida de um bebe.  
Habituados à sua rotina bioquímica e farmacológica, desaprendemos a leitura dos sinais comportamentais dos bebes que observamos, deixando com isso de identificar, compreender, valorizar e respeitar os seus sinais de aproximação e afastamento como se não fossem fundamentais para a sua organização e sua saúde, objeto final de nosso trabalho. É assim que nos tornamos quase cegos. É assim que nos comportamos como analfabetos por não conhecer nem identificar a linguagem corporal muitas vezes gritantes destes bebes.
Ignoramos quase sempre a possibilidade da prevenção da dor nesse bebe, submetendo-o inadvertidamente a tortura clinica cruel e degradante. Passamos por cima dos processos disponibilizados pela ciência atual para prevenir essa dor, prejudicando sua reorganização em nome das necessidades protocolares das rotinas do serviço. Bastava tão pouco para protegê-lo da dor e ainda assim não o fazemos por falta de pratica ou de interesse.
Impedimos em nome dessa mesma rotina o seu direito ao repouso reparador, interrompendo de forma aleatória e irresponsável e sem motivo justificado seu descanso, e ainda desrespeitando seus períodos de sono superficial e profundo, essenciais para seu desenvolvimento psíquico adequado e sua regulação biológica,
Relaxamos muitas vezes em relação a preservação dos limites de ruído que a Unidade Neonatal impõe a este bebe. Misturamos o som do maquinário ao barulho desmedido de nossa voz, perturbando sua necessidade de repouso sonoro que desde o útero favorece seu desenvolvimento psicomotor. E não assumimos esse crime hediondo e repugnante.
Submetemos esse bebe inúmeras vezes por dia a procedimentos estressantes aplicados de forma displicente, injustificada e abusiva. Trocas de fralda, pesagens, tomadas de temperatura, verificação de eliminações, tudo feito de forma desordenada e assincronica, em nome de uma rotina negligente, desumana e irresponsável.
Não permitimos, sob a alegação de monitorização continua, que esse bebe perceba a alternância entre a claridade e a penumbra, para ele a noite e o dia. Anarquizamos com isso sua fisiologia circadiana de modo displicente e sem perdão.
A nossa UTI Neonatal não tem lugar para a mãe e sua imensidão inteira. É Neonatal. Não maternal. Por conta disso delimitamos horários para presença da mãe na unidade, dividindo de modo criminoso o indivisível, e desconsideramos por inúmeras vezes a possibilidade da adoção da Metodologia Mãe Canguru que permitiria a esse bebe crescer e desenvolver-se à luz do amor materno, do calor materno e do leite materno que simbolizam a ciência tecnocrata redimida. 
Tratamos com descuido e sem zelo as possibilidades desse bebe ser alimentado com o leite de sua própria mãe. Negligenciamos suas possibilidades de sucção, permitindo muitas vezes de forma inadvertida seu contato com formulas artificiais e bicos de chupetas e mamadeiras. Faltamos com o empenho necessário para a criação de Bancos de Leite Humano, uma vez que nenhum custo financeiro deveria ser  considerado demasiadamente grande quando utilizado em seu beneficio. Permanecemos distantes do dia em que nenhuma fórmula láctea será displicentemente prescrita e nenhum zelo será descuidadamente aplicado sem que isso signifique desatenção e desamparo.        
Caminhamos para um tempo em que se torna irreversível a necessidade de reformulação do ambiente do bebe nascido prematuramente.
Vale anotar que esse bebe nasce de forma prematura por causas e fatores quase sempre ligados à história materna, e não à sua condição propriamente dita: gravidez em meninas menores de 16 anos ou em mulheres com mais de 35, uso irresponsável de drogas, álcool e tabagismo, hipertensão e diabetes materna, nefropatias durante a gravidez, descolamento da placenta, quantidade anormal do líquido amniótico, anemia, pré-eclampsia, gravidez múltipla, pré-natal irregular, etc...
Isto equivale a dizer que o grande distúrbio fisiológico sofrido pelo bebe que nasce prematuramente não tem origem primaria em suas disfunções orgânicas, uma vez que, ao inverso disso, essas disfunções são conseqüências da profunda e extemporânea alteração de seu habitat. Salvo os distúrbios diretamente causados pela condição materna, durante sua vida intra-uterina este bebe não apresenta nenhuma alteração fisiológica. O nascimento prematuro, ao roubar-lhe o meio adequado, cria as condições suficientes para transformar este bebe hígido no que didaticamente passou a ser definido como bebe prematuro.
É o meio, e não o bebe, portanto, o grande erro.
É o meio, e não o bebe, por isso, o grande problema.
A busca da reformulação do ambiente extra-uterino desde a valorização desta verdade inconteste tem sido o grande trabalho da neonatologia moderna.
Da mesma forma que nós, profissionais dos primórdios do terceiro milênio, nos perguntamos sobre como era possível há 200 anos atrás a sobrevivência de bebes nascidos prematuramente longe dos recursos da tecnologia contemporanea, seguramente daqui a algumas centenas de anos os netos dos nossos netos se perguntarão sobre de que forma nossos bebes dos dias de hoje conseguiram sobreviver ao ruído, ao toque exagerado, à dor, à luz, à separação materna, ao isolamento e à nossa tanta desatenção e negligencia...
Chegamos ao inicio.
Recomeçamos.
O mais importante até aqui foi termos criado as condições necessárias para conseguirmos chegar a este hoje com os olhos voltados para o amanhã.
Um amanhã onde a integridade humana seja preservada desde a concepção até a idade mais senil, onde o homem não seja dividido em legendas e onde a sua compreensão e seu acolhimento sejam considerados de forma integral e completa: biológica, emocional e social.
Onde o fanatismo em torno da dopamina se transmute em reverencia às manifestações da vida e à linguagem do corpo.
Onde nos alfabetizemos na língua da vida exuberante e plena e universal.
Um tempo onde a Unidade Neonatal possa tornar-se uma Unidade Neonatal Maternal, e porque não dizer paternal, familiar...

E neste dia estaremos chegando a um novo inicio cuja semente plantamos cuidadosamente desde aqui.
Esta é a vida.

Deus esteja conosco em nossa caminhada.
Hoje e sempre.