quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Três minutos

 #OutubroVivo #casadocuidar #casapaliativa #paliativas #contemesperança

Em três minutos, ensinar alegria,
Ensinar como é que se prepara um pão,
Como se escreve poesia usando poesia,
Como a gente voa usando a meditação,

Em três minutos, como numa alquimia,
Como cuidar bem da respiração,
Como dançar, inventando a melodia,
Como colorir um coração,

Em três minutos, ou às vezes nem tanto,
Um truque de mágica que parece um encanto,
Inventar uma história que faz a gente sonhar

Em três minutos que ficarão guardados,
Para que possam sempre ser lembrados
Toda vez que o coração da gente precisar...

domingo, 18 de outubro de 2020

Dia do médico

O que você está sentindo? Desde quando?
Um remedinho. Já vai passar.
Me diz se dói quando eu for apertando.
Vai precisar internar.

Qual o nome do xarope que você está tomando?
Tem alguma coisa que você queira me contar?
É tipo uma pontada? Tá formigando?
Deita ali pra eu poder examinar.

Às vezes dói. Ou quase todo dia.
Às vezes causa fadiga de empatia.
Por trás de toda dor, o sofrimento.

E porque não é uma pena a ser cumprida,
Ser médico é escolher cuidar da vida,
E cuidar contém pedaços de amor dentro...

sábado, 22 de dezembro de 2018

O amor e a UTI


      

O amor é talvez o maior legado dos dias de UTI para as famílias que passam por essa experiência. Os laços de família se estreitam. As relações entre os pais se estreitam. O bebê encontra no amor familiar seu maior repouso. E mesmo nos dias de fototerapia, dopamina, cefotaxima e outros significados de grande dor, o amor é o grande refugio desses dias e o grande ponto de chegada tão sonhado.

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Cantiga da despdida


Cantiga de despedida

I
Na tarde de uma UTI movimentada,
Sem que ninguém percebesse, em pensamento,
A mãe canta pro filho, comovida,
Um acalanto, desconsolada,
Uma canção derradeira, como um lamento,
Uma cantiga de despedida...

II
A tarde já vai indo embora, meu filho,
Se escondendo,
A noite escura querendo chegar,
Eu vejo seus olhos, cansados,
Se esquecendo,
Como se nunca mais fossem acordar...
E enquanto a tarde vai se recolhendo,
E o sol já se esquece um pouco de brilhar,
Escuta essa cantiga dedicada,
Uma cantiga pra você ficar,
A vida inteira há pela frente, filho,
Não deixa tanta vida se acabar,
É seu meu colo aquecido de carinho,
Fica comigo, vem descansar
Da dor,
Da solidão,
Do mal,
Do medo,
Da esperança que parece esfarelar,
A tarde vai indo embora, meu menino,
Fica um pouquinho mais,
Vamos brincar,
Vem crescer, andar, cair, se levantar,
Depois correr, cansar e descansar,
Se o choro chegar, a gente faz que não liga,
Me diz que não é tarde demais pra essa cantiga,
Cantiga de não morrer, canção de amar...

III
E o menino, em silencio e de partida,
Nesse momento de despedida,
Já quase sem saber como respirar,
Cantarola baixinho, à sua maneira,
Uma canção derradeira,
Que a sua mãe para sempre vai guardar:

IV
 Minha mãe, meu amor, minha garantia,
Porto seguro da minha vida,
Guarda dentro do seu coração essa alegria:
Não vai haver despedida,

Minha mãe, meu amor, meu astro guia,
Que faz minha alma fortalecida,
Guarda essa doce lembrança desse dia:
Não vai haver despedida...

Além daqui mãezinha, meu amor,
Eu vou levar você por onde for,
Porque nosso seu amor é a única saída...

Guarda essa nossa canção no seu carinho,
E de mãos dadas, nós dois, pelo caminho,
Não vai haver despedida...

V
Daí em diante nada mais se conta,
A mãe, o filho, a partida, a solidão,
Quem sabe um eco, entre monitores,
Continue ressonando um pedaço de canção,
De vida, sempre viva, rediviva,
Sem despedidas para o coração...

terça-feira, 23 de outubro de 2018

O coração materno

Uma vez há muito tempo eu tive um sonho bom 
Eu viajava uma longa e definitiva viagem ao centro do coração materno 
Ao coração de uma mãe de UTI 
Bem lá dentro 
Bem lá no fundo 
E esse dia nesse sonho foi como conhecer de perto a poesia no interior do furacão 
Atravessei no meu sonho cenários de dores imensas 
Cenários feitos de culpas que nunca cessaram mesmo quando nunca existiram 
Feitos de dias de grandes medos e ansiedades
Dias de expectativas sem fim 
Eu via saudades tenebrosas nesses dias
Vontades de filhos em casa
Ausências de quase causar asfixia
Era como mergulhar num rio cinzento 
Mas enquanto eu viajava por dentro desse temporal, uma luz incomum me chamou atenção 
E se chamava esperança essa luz
E alimentava aquele coração por baixo da tempestade 
Enquanto a viagem seguia a dor e a nebulosa ia dando lugar àquela luz de brilho incomum
Uma luz que era a presença diária ao lado do filho por mais que a dor queimasse e as pernas ameaçassem não suportar o peso da dor
Uma luz que era comprometimento 
Fidelidade
Resistência 
Perseverança 
Merecimento 
Uma luz que muitas vezes era traduzida de modo muito próprio e pouco convencional, admito, em forma de leite materno
Gotas de colostro
Alguns mililitros de leite e não mais que isso
Ou muitos copinhos numa descida das mamas que por vezes parecia não ter fim
Ah coração inesperado
Ah coração surpreendente 
Eu via a vida lá dentro do coração materno
Maior que tudo 
Maior que o medo
Maior que a culpa
Maior que a saudade
Vida imensa
Tão grande que quase nem a poesia conseguia descrever
Tão forte que quase a eletrocardiografia não era capaz de captar 
O coração materno de uma mamãe de UTI é como uma usina de força sem tamanho capaz de mover o mundo e inspirar a criação da vida 
Abençoada seja cada fibra dessa fonte que pulsa e aquece um calor que arrebata o mundo
Eu tive há muito tempo atrás um sonho bom
Eu viajava por um país que guardava por trás da dor e por dentro do medo um relicário de esperança e resignação, de movimento e ação, doação e superação...
Desse dia em diante eu nunca mais conseguia me sentir sozinho 
O coração materno eu percebi que era capaz de espalhar ternura por onde passava e essa ternura sem nome e sem definição era capaz de contagiar a humanidade inteira como uma pandemia de amor incondicional 
Eu tive um sonho bom que descobri que de tão bom era como se escapasse do sonho e passasse a fazer parte a partir daquele instante de cada instante dos meus dias e de cada dia da minha vida inteira 
Uma vez ha muito tempo eu tive um sonho bom
E depois desse dia nunca mais me foi permitido parar de sonhar 

Ao coração das mães de UTI com carinho 
Luis Tavares 

sábado, 15 de setembro de 2018

O leite materno não é o mesmo

Para Dalton e Rose, por ocasião de sua visita a Campos em 12 de setembro de 2018

O leite materno não é o mesmo.
Decorridos os dez primeiros minutos da mamada, ele já é outro.
Da mesma forma não é o mesmo depois de uma semana do que ele era nas primeiras horas de vida, e após a segunda semana também não é o mesmo que foi no quinto dia.
Entre as mães prematuras, não é o mesmo que é na mãe de 28 semanas do que é na mãe de 34.
O leite materno não é o mesmo na mãe medicada que é na mãe sem uso de medicamento algum.
O das mães vegetarianas não é o mesmo daquele das mães que adoram um churrasco.
Não é o mesmo nas mães senegalesas que é nas russas, nem nas brasileiras nordestinas que é nas mães quase compatriotas do alentejo.
O que habita a mãe apoiada não é o mesmo que existe na mãe despedaçada, na abandonada ou na mãe mergulhada em despreparo ou dor.
O leite materno da mãe resfriada não é o mesmo que há na mãe saudável, nem é o mesmo o leite das mães de colonias de pescadores e o leite das mães dos pampas gaúchos.
Não é o mesmo o leite após o quinto mes de amamentação, após o quinto filho, após o quinto copo de cerveja, a quinta hora de sono ou o quinto gol da Alemanha contra o Brasil.
O leite materno não se repete nunca. Nunca é o mesmo entre uma mãe e outra. Nunca é o mesmo entre momentos diferentes de uma mesma mãe.
Não é o mesmo na dor o que é na alegria.
Não é o mesmo na guerra o que é na paz.
Na ditadura, nos estados de exceção, na opressão do jugo armado não é o mesmo que é no estado democrático de direito.
Não é o mesmo num presidio o que é numa praça publica, num Banco de Leite ou numa UTI Neonatal.
Quase como uma representação arquetípica de um camaleão, por tão diverso que é, tão sem replica, unico a cada instante, as vezes me pergunto por que motivo damos a todas as suas configurações o mesmo nome comum de leite materno.
Talvez porque, como mães que igualmente nunca se repetem, não se conheça nada nessa vida tão completo, absoluto e mágico e tão exageradamente farto de poder.
O leite materno, que não se repete e que nunca é o mesmo, é o pedacinho que nos é dado conhecer da quase indecifrável poesia de Deus.





domingo, 27 de maio de 2018

Carta à uma mãe de UTI

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Tornar-se mãe de UTI não é desejo para nenhuma mãe. Muito menos opção. Sabe aquele momento em que a sua única opção é ser forte? Então, o momento é esse. Esqueça a fragilidade do resguardo, dos sentimentos delicados, da calmaria do pós parto com um bebê nos braços e a curtição dos primeiros momentos. Sua vida será invadida por medo, insegurança, dor, desespero... e você ainda terá que ser forte.
E assim me vi ali, dentro de uma UTI. Os pontos ainda ardiam mas eu não me permitia ficar deitada, queria vê-la. Minha filha. Nasceu e foi para uma UTI, me trouxeram registro de um bebê de um pouco mais de 500 gramas e a observação: é muito pequena. E eu, na minha mente e na minha mas pura inocência pensando, tudo bem, já brinquei com  bonecas pequenas quando era criança, vou aprender a cuidar dela. E assim, a pequenos passos fui vê-la, e quanto mais me aproximava da incubadora, menos via. Cadê ela?
Ela não era miúda. Era minúscula, numa indescritiva proporção de tamanho para a minha imaginação do que seria um bebê. E não era só isso. Tinha fios e tubos por todo o seu corpo, sua pele era estranha e eu recebia a informação da pediatra: Sua filha é um bebê grave. Gravíssima. Parece que o chão se abre e você cai num abismo sem ter onde se segurar. E ali você tem q descobrir onde encontrar sua força, pois na sua frente tem um bebê que precisa disso para sobreviver.
Os dias passam a ser cada vez mais longos. E sim, você vai querer ir ao lugar que mais te trará dor, todos os dias, pelo simples fato de lá se encontrar a fonte de todo amor que pode caber no seu peito. Serão dias terríveis, mediados por dias horríveis e às vezes alguns dias melhores. Mas ainda assim você encontrará resquícios de alegria por entre toda essa dor. Às vezes em algum sinal de melhora, às vezes por um rápido sorriso. Mas acredite, você encontrará.
Foram 163 dias de ventilação mecânica. Então, tem essa parte que você passa a aprender todos esses termos técnicos e passa a perguntar por eles. E tem a parte que você tem que aprender que terão dias de pioras. Terá a parte de você sofrer com a dor de outras mães. Mas com isso você também vai aprender a dar mais valor a pequenas coisas do dia-a-dia. A vida ganhará novo significado.
Passei 231 dias ao lado da minha filha em uma UTI Neonatal. 231 Longos dias. Saí com minha filha nos braços. Saí numa correria esfuziante como se tivesse deixado pra tras todos os problemas que poderiam existir. Mas uma mãe de UTI não deixa de ser mãe de UTI na alta. Você continua sendo mãe de UTI nas muitas consultas que virão pela frente, nos muitos especialistas que terá que procurar, e sim, ainda terão ocorrências pela frente. Com a diferença que você está em casa, sozinha com sua filha, e terá que correr com ela nos braços a procura de socorro.
Se valeu a pena? Bom, lembra que não é uma opção? Ai que entra a força, aquela que te fará lutar por cada segundo de felicidade que poderá proporcionar a sua pequena. E ai você vai ver que os pequenos momentos se agigantam numa imensidão que posso te dizer com toda certeza: Vai valer a pena! Tudo! E sua alma nunca mais será pequena.
E após 4 anos fico novamente grávida. Entrei sim em desespero no primeiro momento. Me cuidei de todas as maneiras possíveis para fugir dos dias de UTI. Fugi, fugi, fugi... E novamente fui mãe prematura. Quando me encontrei novamente na porta da UTI para ver minha segunda filha, desabei. Não quis entrar, senti novamente toda dor daqueles dias, toda junta, atrás de uma porta a qual eu tinha que abrir pois atrás dela havia outra pequenina a minha espera. Minha filha. Não consegui abri. Voltei para o quarto, esperando a força vir, pois ali naquele momento eu a tinha perdido. A força não vem o tempo todo. E você vai descobri o verdadeiro significado da palavra fé!
Voltei até lá e entrei. Entrei e chorei. Porque vi outra pequenina, tão frágil. Já perguntei por ela com o conhecimento do que era todos esses tubos e fios ligados a seu corpo. E voltei ao dia-a-dia cuidar, rezar, amar. Mas dessa vez não à espera desesperada da alta, pois já sabia que a alta é apenas mais um passo. Só queria que tudo ficasse bem.
46 dias depois saio novamente de uma UTI. Agora com reforço, pois levei minha mais velha para busca-la. Não é fácil. Mas tê-las nos braços me faz forte. E sei que meu braço as faz forte. Você vai perceber isso. Que você faz seu filho forte quando o aconchega nos seus braços. E no final é só isso que mãe e filho precisam.

Lívia Ressiguier
Mãe de Aymee e Paolla