terça-feira, 23 de outubro de 2018

O coração materno

Uma vez há muito tempo eu tive um sonho bom 
Eu viajava uma longa e definitiva viagem ao centro do coração materno 
Ao coração de uma mãe de UTI 
Bem lá dentro 
Bem lá no fundo 
E esse dia nesse sonho foi como conhecer de perto a poesia no interior do furacão 
Atravessei no meu sonho cenários de dores imensas 
Cenários feitos de culpas que nunca cessaram mesmo quando nunca existiram 
Feitos de dias de grandes medos e ansiedades
Dias de expectativas sem fim 
Eu via saudades tenebrosas nesses dias
Vontades de filhos em casa
Ausências de quase causar asfixia
Era como mergulhar num rio cinzento 
Mas enquanto eu viajava por dentro desse temporal, uma luz incomum me chamou atenção 
E se chamava esperança essa luz
E alimentava aquele coração por baixo da tempestade 
Enquanto a viagem seguia a dor e a nebulosa ia dando lugar àquela luz de brilho incomum
Uma luz que era a presença diária ao lado do filho por mais que a dor queimasse e as pernas ameaçassem não suportar o peso da dor
Uma luz que era comprometimento 
Fidelidade
Resistência 
Perseverança 
Merecimento 
Uma luz que muitas vezes era traduzida de modo muito próprio e pouco convencional, admito, em forma de leite materno
Gotas de colostro
Alguns mililitros de leite e não mais que isso
Ou muitos copinhos numa descida das mamas que por vezes parecia não ter fim
Ah coração inesperado
Ah coração surpreendente 
Eu via a vida lá dentro do coração materno
Maior que tudo 
Maior que o medo
Maior que a culpa
Maior que a saudade
Vida imensa
Tão grande que quase nem a poesia conseguia descrever
Tão forte que quase a eletrocardiografia não era capaz de captar 
O coração materno de uma mamãe de UTI é como uma usina de força sem tamanho capaz de mover o mundo e inspirar a criação da vida 
Abençoada seja cada fibra dessa fonte que pulsa e aquece um calor que arrebata o mundo
Eu tive há muito tempo atrás um sonho bom
Eu viajava por um país que guardava por trás da dor e por dentro do medo um relicário de esperança e resignação, de movimento e ação, doação e superação...
Desse dia em diante eu nunca mais conseguia me sentir sozinho 
O coração materno eu percebi que era capaz de espalhar ternura por onde passava e essa ternura sem nome e sem definição era capaz de contagiar a humanidade inteira como uma pandemia de amor incondicional 
Eu tive um sonho bom que descobri que de tão bom era como se escapasse do sonho e passasse a fazer parte a partir daquele instante de cada instante dos meus dias e de cada dia da minha vida inteira 
Uma vez ha muito tempo eu tive um sonho bom
E depois desse dia nunca mais me foi permitido parar de sonhar 

Ao coração das mães de UTI com carinho 
Luis Tavares